A convite do Itamaraty, jogadoras amadoras juvenis vieram treinar no Brasil.
Elas contaram ao G1 das dificuldades que enfrentam no território ocupado.
O técnico de futebol Kleiton Lima, evangélico, chama as jogadoras do grupo para formar um círculoe explica que é hora da oração. Ele ressalta que é um ritual opcional e que quem não se sentir à vontade poderia não participar. Neste momento, é interrompido pelo muçulmano Hani Saeed Almajbouba, seu auxiliar, que assegura que não há impedimento algum e todas as garotas teriam muito prazer em rezar juntas, pois “cristãos e muçulmanos são todos irmãos”.
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Essa confraternização ocorreu na tarde de quarta (23), no Centro de Treinamento Rei Pelé, entre os elencos femininos do Santos e da equipe sub-20 da Palestina. A seleção árabe de base, reforçada por algumas atletas da equipe adulta, veio treinar duas semanas em Santos a convite do Itamaraty, feito após visita de Lula à Palestina em março.
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G1 entrevistou integrantes do time amador palestino, que falaram dos problemas de seu cotidiano no Oriente Médio, o que inclui a dificuldade para obter a aceitação do futebol feminino pelos próprios palestinos, de conciliar vida pessoal e treinamentos e também de enfrentar os problemas impostos pela questão territorial com Israel.
Elas também falaram sobre as diferenças culturais que sentiram, por exemplo, ao ver brasileiras usando a Estrela de Davi, símbolo judaico, e ao saber que, diferentemente do que ocorre no Oriente Médio, no Brasil as religiões convivem pacificamente.
Times femininos do Santos e da Palestina se unem para orar juntos no CT Rei Pelé. (Foto: João Novaes/G1) Jogadoras do Santos, de azul, ajudam equipe palestina, de verde. (Foto: João Novaes/G1) VéuA atleta que mais chamou atenção dos jornalistas durante o treino foi a zagueira Nevin Alkalayb, de 25 anos, uma das veteranas do grupo. Sua escolha para participar da entrevista coletiva não se deveu aos seus dotes técnicos, mas ao fato de ser a única a jogar e treinar com um véu cobrindo parcialmente seu rosto. Já acostumada ao estranhamento que provoca aos olhos dos ocidentais mais leigos, Nevin fez questão de ressaltar que o acessório nunca foi um empecilho.
A zagueira palestina Nevin Alkalayb, que assegura que o véu nunca a atrapalhou para jogar. (Foto: João Novaes/G1) “O véu nunca me atrapalhou em nada, nem para realizar para qualquer movimento. Sempre fiz tudo com ele e nunca me senti diferente das outras jogadoras por causa disso. Em outros países muçulmanos também é assim, é normal para nós”, afirmou, um tanto tímida. Após ter tentado a carreira em vários esportes, preferiu o futebol por sentir a modalidade como uma expressão de identidade. “Para mim, o futebol é como o ar que eu respiro. As jogadoras brasileiras são um espelho para mim. Aqui, as pessoas jogam futebol representando o que são: alegres e com vontade de viver.”
Dificuldades
A delegação, que chegou ao Brasil no domingo e ficará até o próximo dia 6, é composta de 20 jogadoras completamente amadoras, além de quatro membros da comissão técnica. Treze atletas são muçulmanas e sete cristãs, e todas estudam. Em comum, todas convivem com as mesmas dificuldades para conseguir conciliar a vida pessoal e os estudos na conturbada região reivindicada pela Autoridade Nacional Palestina (ANP) a Israel.
O primeiro obstáculo para elas, segundo Almajbouba, que é na verdade é o técnico da delegação, é conseguir a aceitação do futebol feminino pela própria sociedade – um preconceito que as jogadoras brasileiras também sofrem na pele. “Geralmente, em países árabes, as famílias não gostam que suas filhas optem pelo futebol. Mas, em quase todos há seleções femininas se formando, e é sinal de que isso começa a mudar aos poucos. O futebol feminino existe na Palestina há apenas dois anos e nosso objetivo é nos tornarmos uma força regional.”
Shareehan, capitã da equipe palestina durante treino
no CT. (Foto: João Novaes/G1) A capitã da equipe, Shareehan Khwees, residente em Jerusalém Oriental, não se envergonha de admitir a relação entre a situação social e econômica crítica pela qual passa seu povo com a precariedade do desenvolvimento esportivo de seu país.
“Temos muito poucos locais para treinamento. Em geral, cada cidade tem apenas um ou dois campos, que são ocupados na maior parte do tempo pelos rapazes. Nós estudamos a maior parte do tempo e só conseguimos treinar duas vezes por semana”, disse ela, em entrevista após o treino.
“Fale dos pontos de checagem!”, “Denuncie o que eles fazem conosco”, gritavam em inglês algumas jogadoras para a capitã. Elas faziam referência às diversas barreiras de segurança montadas pelo exército israelense no território em disputa. Enquanto o estado judeu as justifica como uma medida essencial de segurança, para evitar o transporte de armamentos, a população palestina reclama, entre outros argumentos, que essa medida compromete toda a mobilidade na região, além de denunciar diversos casos de abusos e humilhações por parte dos soldados israelenses durante as checagens.
Temos o tempo todo que nos identificar para os judeus que estão em nossas cidades e não temos o direito de ir e vir"
Shareenah, capitã da equipe palestina
“Nossa situação é muito difícil. Temos de nos locomover de uma cidade para outra de ônibus dentro de nosso próprio país e passar por vários desses pontos, o que pode durar horas. Temos o tempo todo que nos identificar para os judeus que estão em nossas cidades e não temos o direito de ir e vir. Para isso, só quando recebermos a autorização deles”, protesta a capitã. Na delegação, não havia nenhuma atleta representante da Faixa de Gaza. Segundo as jogadoras, o governo israelense não autorizou a saída das jogadoras para o exterior.
Muito esclarecida e com forte liderança sobre o grupo, Shareehan já planeja sua vida depois que largar o futebol. “É claro que todas nós sonhamos em jogar profissionalmente um dia. Mas se eu não conseguir, quero me tornar uma mulher de negócios, ou então advogada. Sou uma dessas estudiosas, sabe? Sei que, dessa forma, poderei também ajudar a causa palestina”, disse a atacante, que afirmou ter estranhado o frio e a chuva constante na cidade e adorado treinar na praia e poder nadar em uma piscina dentro de um hotel com vista para o mar.
Segundo o tradutor Richard Teffer, que auxilia o técnico santista a passar instruções em inglês para as jogadoras, as palestinas chegaram a estranhar que algumas brasileiras portassem correntes com uma Estrela de Davi, pois nem todas sabiam que o tradicional símbolo do judaísmo também era utilizado por cristãos. “Imediatamente explicamos a elas que, aqui, todas as religiões convivem pacificamente. Falamos até do caso de um judeu e um muçulmano sócios de um restaurante aqui perto. Mas elas não costumam esboçar muita reação quando tocamos no assunto, são muito reservadas”, explicou Teffer. Invariavelmente, toda menção de Israel feita por elas era acompanhada do termo “invasor”.
A zagueira do Santos Aline Pellegrino afirmou que o relacionamento tem sido ótimo e, apesar de poucas garotas nos dois grupos falarem inglês, elas têm conseguido se comunicar através da bola. “Por enquanto, só nos vimos em treinamentos, mas somos todas jogadoras, falamos a mesma língua. No início não sabíamos o que esperar, mas logo começamos a fazer cada vez mais brincadeiras com elas, essas típicas de treino. Ah, estamos ensinando elas a sambar também, imaginem. Acho que até sexta (25), quando formos assistir juntas ao jogo do Brasil, vamos nos entrosar ainda mais.”
O treinamento
A ideia do treinamento partiu do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, após a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Oriente Médio em março.
Na ocasião, o chanceler Celso Amorim foi abordado por uma estudante palestina que lhe sugeriu a ideia.
Segundo o Itamaraty, é a primeira atividade realizada no âmbito do Memorando de Entendimento sobre Cooperação na Área do Esporte. Ela se insere na política brasileira de cooperação esportiva com países em desenvolvimento e constitui gesto de solidariedade com o povo palestino.
De acordo com o embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Alzeben, trata-se do primeiro de uma série de programas de intercâmbio esportivo. “Outros projetos estão a caminho, só ainda não foram agendados. Acredito que o campo de futebol deveria servir para acabar com qualquer tipo de conflito”, disse o chanceler. Segundo Alzeben, esta é a primeira vez que uma delegação esportiva representando a Palestina cruza o Atlântico.
Além de jogar com as atletas do time principal, muitas delas com passagem pela seleção brasileira, o objetivo das visitantes é aprender noções básicas de treinamentos, fundamentos e preparação física. A presença delas chamou atenção até mesmo dos atletas do time masculino principal, que acompanharam parte do treino com curiosidade.